terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Vinil

Ela nunca deixou as roupas no mesmo canto do quarto dele, mas sempre espalhadas ao redor da cama. O sutiã longe da blusa, a calça no outro canto em relação ao sapato. Era pra ter uma desculpa pra ficar mais tempo, quem sabe enquanto ela dava a volta pra pegar a outra peça ele perceberia que queria que ela ficasse. Ele pediria pra ela não ir, pra ela ficar e eles ouviriam o último vinil que ele comprou na feira de domingo no centro da cidade. Quem sabe ele enfim teria coragem de ser sincero consigo mesmo e entender que o mundo fazia mais sentido quando o corpo dela ocupava o espaço ao lado do corpo dele. Ela soltaria a blusa no chão, sem se importar em ir amassada para o trabalho no dia seguinte. Ela ficaria e tentaria não dizer o quanto ela esperou por isso e nem que ela prefere o vinil da semana passada.

Recolheu todas as peças lentamente enquanto ele falava amenidades. Levou-a até a porta, beijou-a e disse que a procurava. 

Ela nunca mais ouviu um disco de vinil. 

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Mas não esta

Nos muros da Augusta, um estêncil define por mim: "passaria uma vida ao seu lado, mas não esta".


Não esta, meu bem. Nesta eu fui feita pra voar. Você não voa, você se plantou de peso ao chão. Achei que eu pudesse te acompanhar, passar a vida assim, mas, meu bem, eu preciso flutuar. Preciso sair desesperadamente por aí e isso significa bater nas coisas, causar tumulto, me machucar. Eu, que sempre pensei preferir o sossego, mas descobri que ao seu lado não há sossego, é só marasmo e covardia e dentro de mim a vontade inquietante de descobrir o mundo todo recobre meus 1,55m e já é pesada demais pra pousar deitada sobre o seu peito. Eu preciso arriscar, me quebrar, me refazer, reaprender e quebrar de novo pra me sentir inteira. Do seu lado, a covardia sufoca a vontade. Você, que nem foi capaz de se entregar, que prefere o certo e o seguro ao invés do amor. Você, que me queria apenas se eu fosse o que eu não sou.

Mas eu sei que passaria uma vida ao seu lado, fazendo todas aquelas coisas que eu te escrevei. Sei que viveria ao lado teu porque toda semana você aparece pra mim em sonho e eu acordo querendo saber como você está. Poque eu tenho essa necessidade e mesmo sabendo que hoje somos dois estranhos mas que de alguma forma estão ligados. Eu passaria uma vida inteira olhando as covinhas do seu sorriso, mas não esta, meu bem. A angústia instigante das coisas que eu não sei, e são demais de muitas, não me permitem ficar parada te observando. Você sabe, eu nem acredito em outras vidas, mas gosto de acreditar que reservaria uma delas pra viver ao seu lado. Mas esta não, meu amor. Esta foi feita pra voar.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Sujeito (in)comum

Você passou no canto direito da rua, fiquei na ponta dos pés pra te ver passar, num esforço significativo já que minhas pernas tremiam involuntariamente. Mas você passou e não era você, mais um alarme falso. 
Seu rosto estava espalhado pelo centro da cidade, da Praça da República ao Vale do Anhangabaú. Tinha você por toda a São João, inclusive eu sentia a mesma coisa que Caetano quando passei por essa na altura da Ipiranga, porque te vi parado, de perfil, um perfil que nem era o seu. 
Vi o cinza usual esparramar-se e senti uma profunda agonia por não saber se a gente dividia aquele céu. Se você via o mesmo cinza que eu, talvez isso ou pelo menos isso, já que você nunca sentiu o mesmo que eu, já que você nunca se pegou procurando meu rosto por aí, como eu fazia com o seu naquele momento.
Notei que seu rosto talvez seja comum, tem muita gente com seus traços por aí. Tem você barbudo, na versão barba feita, tem você bem mais baixo do que nas minhas lembranças ao seu lado. Tem você vestindo cores que eu nunca te vi vestir. 

Notei que tem muito você por aí e ainda tem você por aqui, em mim. Tem você o suficiente pra me fazer ver tanto seu rosto por aí, enquanto abafo essa agonia de que talvez eu não saiba quem você é realmente e só saiba que você não é nenhum desses rostos na multidão que circula por essa cidade cinza. 

quinta-feira, 10 de abril de 2014

De lá até aqui.

Éramos só eu, ela, o céu e o mar mais bonito que a gente já viu. O nítido barulho das ondas quebrando lentamente no mar indicavam que a praia era toda nossa, como as histórias que a gente dividiu até aqui. Aquela quinta-feira, em que a gente acordou num estado e foi descobrir um novo, era a coroação de todas as descobertas que fizemos juntas. Vez em quando uma de nós abria os olhos, levantava a cabeça, fitava aquele mar e quebrava o silêncio perguntando: "olha esse mar! Você acredita que a gente tá aqui?".

Apesar de morarmos do lado uma da outra, a gente precisou atravessar a cidade pra se encontrar. A gente se encontrou pra compartilhar os anos mais desafiadores - e os melhores - de nossas vidas. Ela sou eu morena, eu em outro corpo, um pouco mais alto, bem mais magro,  mas ela não sou eu quando falta um pedaço que precisa ser completo. Ela é a disciplina que eu não tenho, a vontade de levantar todos os dias e cumprir tudo o que é preciso, a determinação que nenhuma nota minha vai alcançar. Apesar disso, tem um tanto de mim nela, tem muito dela em mim. Deus sabia que eu era pequena demais pra carregar toda a angústia que é viver e me deu outro corpo pra guardar um pouco. Dos nosso medos de não chegarmos a sermos o que queremos compartilhados em longas viagens de trens, das pressas divididas entre garfadas na comida sem gosto do bandeijão, das mudanças que vieram parecidas pra nós, sempre em épocas próximas. Das músicas compartilhadas, inclusive aquela da Mallu que tem meu nome e ela sempre canta pra mim, dos sonhos que não cabem no peito, mas cabem numa mochila pra levar pela América do Sul ou no estojo da Mafalda que ela me trouxe da Argentina. Das longas conversas sentadas sobre a grama contaminada da EACH, num ônibus na estrada pra Arraial ou sentadas num banco numa praça lotada em Laranjeiras.

A gente é pequena demais pra esse mundo. A gente tem pressa e compromissos demais. A gente tem medo da nossa resignação a essa rotina. A gente tem angústia do que vai ser de nós e se a gente vai ser mesmo o que a gente sonha. Mas, você acredita que a gente tá aqui?  Só ela seria capaz de entender plenamente o que cada quilômetro andado nessa cidade me ensinou, porque a ensinou também. Você acredita que a gente tá aqui? O tanto que aprendemos, vivemos, crescemos, mudamos. Você acredita que a gente tá aqui? Talvez a gente nem saiba onde "aqui" signifique, onde a gente está de fato ou pra onde estamos indo. Mas a gente tá aqui. A gente. Eu e ela, eu que sou ela, ela que sou eu. 

Sobre amanhã, Deus sabe. O que eu sei é que nós duas estaremos lá, como foi desde nosso início, e uma de nós vai quebrar o silêncio pra dizer: "você acredita que a gente tá aqui?". 

PS: Feliz Aniversário! 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Varanda

Tocou. Entre as idas e vindas da vida, desde quando ainda não havia foto na tela do celular, poucas coisas são tão certas quanto esse telefonema. Sempre em datas importantes, não importando na verdade a data; poderia ser uma terça-feira comum para o calendário mundial, mas o dia se faz importante quando essa voz que é só sua percorre centenas de quilômetros pra chegar certeira por aqui. 
Rotinas foram alteradas, compromissos foram inventados quase que de maneira compulsiva e sufocante, nossos gostos, sonhos e nós mesmos. O tempo jogou pesado, fez inúmeras cobranças, inventou metas, sufocou prazeres, mas não o suficiente. O que não mudou ao longo de todos esses anos foi a nossa habilidade de transformar qualquer cenário do mundo em nossa varanda, nossa arejada varanda, onde tem rede e vista para o mar. Onde tem confissões e silêncio, tem seu sotaque, o meu preferido no mundo todo. Tem as músicas que dividimos, os apelidos que você inventou pra mim, a beleza de Recife, as angústias de São Paulo, os textos que compartilhamos, os livros que ainda não lemos, mas prometemos com dedicatórias um ao outro, e os sonhos que não realizamos. Tem eu e você, que sempre nos encontramos lá quando, como escreveu João Guimarães Rosa, "o correr da vida embrulha tudo".
Nossa varanda é sustentada pelos pilares feitos de todos os mistérios que nós gostamos de conversar, mas que somos pequenos e afoitos demais pra entender: é sobre graça, sobre vida, sobre esperança, sobre fé, sobre amor. Nossa varanda é enfeitada pelas nossas angústias e pelo prazer de haver com quem compartilhar. Nela cabem os muitos quilômetros de distância que separam o meu abraço do seu, mas que exatamente por isso, tornam nossa varanda o lugar ao qual eu mais pertenço no mundo. Lá é tempo de andar descalço e sentir o chão, é lugar pra debruçar no parapeito esculpido pelos nossos medos, apoiando um no outro pra não cair. A varanda é tempo de encontro, do nosso encontro: um com o outro e com o Amor que nos trouxe até aqui. 

"Preciso ir", "eu também, estão me chamando para o jantar".
Nunca sabemos quando será a próxima vez, mas sempre sabemos onde será: na nossa varanda, onde nunca se exigiu endereço, hora marcada ou presença física. Apenas nós dois e a vontade de estar ali. 







quinta-feira, 28 de junho de 2012

A nós.

A mesa está lotada. Tem gente ocupando os meus dois lados, pratos e copos infinitos à minha frente. Eles contam histórias entre um gole e outro, gargalham e eu até tento acompanhar. Faço uma graça aqui, solto uma piadinha acolá, finjo interesse em um caso que nem sei. O mocinho da direita até contou algo interessante, eu retribuí com uma das minhas histórias bizarras sobre o centro de São Paulo e me esforcei na risada. Mas daí lembrei no meio dela que queria te contar essa história, essa e as outras trocentas que eu guardo na minha caixa de coisas inacabadas, junto com o nosso amor e as apostilas do francês. É que desde que a sua falta tornou-se a companhia mais frequente em todas as mesas em que sento, tudo é um pouco mais. As pessoas são mais babacas, suas histórias mais vazias, as gargalhadas mais estridentes. O som alto causa mais incômodo, essa meia-luz me dá vertigem. A cerveja é mais quente, o torto do quadro na parede desperta o meu TOC. Mentalmente, tiro todos de seus lugares e deixo sua falta correr livre pelas cadeiras, escolhendo até se acomodar numa bem próxima a mim. Porque sua falta ainda é melhor do que esta noite.

Volto pra cena. Enquanto alguém na ponta esquerda reconta uma piada batida que viu no Facebook e ao meu lado direito um namorado desdobra-se na tentativa de agradar a namorada raivosa que o pegou fitando as coxas da morena da mesa detrás, eu respiro fundo, engulo um pedaço da pizza que já esfriou e faço um brinde imóvel e silencioso ao aniversário de quando eu deixei de ser inteira.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Já passa da hora, tá lindo lá fora.

"E nada como o tempo após um contratempo pro meu coração", já cantou o mestre Chico.

Gosto quando o coração renasce. Se reergue assim: meio bambo, desajeitado, administrando as dosagens de qualquer suposto remédio para não tombar. Evitando movimentos bruscos, porque ainda dolorido. Em doses homeopáticas levanta da cama e arrisca as primeiras voltas lá fora. Ora receoso, ora confortável. Sente os primeiros golpes de ar fresco, cuidadoso para não sucumbir numa pneumonia. E segue. Aumentando as passadas e fortalecendo os pés no chão que, mesmo irregular, mostra-se digno da caminhada. Segue, cambaleando e zonzo, pra cada passo comemorado como a maior vitória. Um coração doente aprende com maestria a relativizar o tempo. Poucos dias podem significar um mês, o turbilhão de um ano pode fazer-se presente em uma semana.

Seu nome não doeu. Não senti no peito o coração comprimindo pra se esconder da dor ou expandindo numa tentativa de fuga pela garganta. Por conta própria e sem alarde, acho que ele entrou em processo de recuperação. Sem ordem médica, o danado decidiu que quer dar suas voltas por aí. E faz questão de que seja sozinho. Abdica da companhia dos medos e traumas, que permaneceram mesmo após a sua partida, e prefere trancá-los no fundo do armário, atrás das roupas de inverno ou numa caixa de sapatos empoeirada debaixo da cama. E avisa que vai sem cachecol, que é pra desatar os nós que ficaram estagnados na garganta. Outro dia o vi, tímido e desengonçado, a arriscar seus primeiros batimentos acelerados com um sorriso por aí. Corou ao perceber que foi flagrado, mas deixou estampado um riso frouxo no canto da boca. E assim, corando por causa de outros sorrisos, a maçã do rosto vai perdendo a palidez e o ar doentio para dar lugar a um rosa claro e vivo. O danado já canta sem ter motivo, refazendo-se a cada nota de uma canção. Prefere as alegres, mas a voz treme cada dia menos quando arrisca uma triste, cheia de recordação em suas estrofes.
Às vezes precisa repousar. Dolorido e cansado, pede arrego. Mas já não acha que se deitar é sinônimo de fraqueza. Aprendeu a respeitar a dor e que a trégua é parte indispensável do processo pra vê-la ir embora e levantar mais forte.

E já que o texto começou com um trecho do Chico Buarque, nada mais justo do que terminá-lo da mesma maneira. Dessa vez com o hino que embala os primeiros passos trôpegos desse coração - fraturado, desajeitado e cheio de esperança de renascer: "agora já passa da hora, tá lindo lá fora. Larga a minha mão, solta as unhas do meu coração, que ele está apressado e desanda a bater desvairado quando entra o verão".